Santo Graal
Fraldas, mamadeira, comer e dormir.
Acordo ao lado de uma mulher que eu nunca vi antes. Ela não é feia, também não é bonita. Cabelos castanhos, pele branca e mamilos rosados. Não sei a cor dos seus olhos, eles estão fechados, ela ressona suavemente. Eu poderia me apaixonar por ela. Não, não poderia.
Comer, cagar e depois comer. Chorar pra chamar a atenção. Amar a mãe, matar o pai.
Continuo deitado de barriga para cima. Olho o teto que não é o do meu quarto. Uma mancha de infiltração percorre sinuosa da direita para esquerda, forma um desenho pouco compreensível logo acima da minha cabeça. É como aquelas figuras disformes que os psicólogos dos filmes sempre mostram aos malucos. Com algum esforço consigo reconhecê-lo.
Ir para a escola. Bater num coleguinha menor, apanhar de um maior. Ficar de castigo. Xingar a professora.
Um animal. Talvez um cachorro, mas ele só tem duas patas. A cabeça, ou algo semelhante, poderia também ser de um gato. Mas opto pelo cachorro. Fecho os olhos e ainda posso ver a imagem que se formou no teto. Acho que também sou maluco.
Bater punheta, espremer espinhas, rir dos outros, odiar tudo, odiar todos. Provar que macho. Abro novamente os olhos e sento na beirada da cama.
Observo sem muito interesse o resto do quarto que recende a perfume vagabundo. Móveis velhos e baratos comprados num saldão qualquer. Minha carteira está sobre o criado mudo ao meu lado. Confiro. Meu dinheiro ainda está lá.
Fumar, beber vodka barata, fazer uma cena de ciúme, vomitar, ter dor de cabeça e pedir desculpas no dia seguinte.
Ela continua a ressonar. Dorme feito um anjo. Um anjo meio vagaba com toda essa maquiagem já meio borrada na cara, mas ainda assim um anjo.
Entrar pra faculdade. Fumar maconha e não tragar. Cortar o cabelo. Ser fotografado de beca ao lado da mãe e do pai. Arrumar um emprego.
Levanto e visto minha roupa. Ela se mexe e diz algo incompreensível.
Comprar apartamento e móveis caros. Endividar-se. Casar, ter filhos, engordar assustadoramente e não se importar. Aumentar o número de cigarros e de doses de álcool diários. Pagar impostos. Sonegar outros.
Pergunta se eu já estou indo. Respondo que sim, já é tarde. Ela senta-se na cama sobre as próprias pernas e faz cara de desolada.
Acordar mais tarde aos domingos. Ver tv. Reclamar do barulho das crianças. Reclamar da demora do almoço. Perguntar se ela esta com o DIU. Trepar uma ou duas vezes.
Uma péssima atriz, penso. Penso ainda que ela deveria ir lavar o rosto, mas não digo nada. Ela pergunta se eu gostei e digo que não, mas que não é culpa dela.
Odiar a esposa. Ser odiado pelos filhos. Voltar mais tarde do trabalho. Separar-se depois de vinte e cinco anos. Começar uma nova vida, muito mais miseravelmente sem sentido que a primeira. Casar-se novamente. Separar-se.
Digo que a culpa é minha. Estava com a cabeça em outro lugar. Abro a carteira e estendo o dinheiro em sua direção. Ela diz que não quer, que quer que eu volte. Insisto, digo que é um presente e ela aceita antes que eu desista.
Fazer check-up de rotina. Descobrir que está doente e que não tem cura. Ligar para o filho mais velho e não ter coragem de contar. Comprar uma arma.
Ela pergunta se eu vou voltar.
Trepar com uma vagabunda.
Respondo que não.