A Liberdade é negra
Camilla Costa
ccosta@grupoatarde.com.br
“Na semana da consciência negra todo mundo quer virar preto”, diz Luana Dandara, 20, sem piedade. Luana mora na Liberdade, símbolo da negritude baiana, que hoje é o centro das atenções em Salvador.
O bairro da Liberdade tem cerca de 190 hectares [quase 2 milhões de metros quadrados], contando as regiões de Japão, Queimadinho, Siero, Curuzu, Guarani, Estica, São Lourenço, Alegria, Largo do Tanque e Baixa do Fiscal. Sem falar nos bairros de Pero Vaz, Caixa D‘Água e Lapinha, nas proximidades.
Como ninguém foi lá contar, o número de habitantes da Liberdade varia entre 300 e 600 mil — o mapeamento dos bairros de Salvador ainda está sendo feito pela Secretaria Municipal de Planejamento. Mesmo assim, a Liberdade é considerada o maior bairro negro da Bahia e do Brasil, e é comercialmente independente do resto de Salvador. Morar lá seria quase como morar em outra cidade, se os habitantes não dependessem de outros bairros para se divertir. “Aqui tem tudo, só falta o lazer”, resume Valéria Lima, 20, estudante de comunicação.
Deserto – Luana Dandara, Tauami Kwango, Katiana Araújo, Winnie Grazielli, Rivânia da Paixão, Arivaldo Ferreira e Uiran Charles se conheceram fazendo os cursos do Ilê Aiyê, no Curuzu, mas têm rotinas bem diferentes. Eles nos ajudaram a fazer um mapa da diversão na Liberdade, mesmo admitindo que o território é meio desértico. “Não faço muita coisa aqui, não”, diz Katiana, 24.
Para Tauami, 20, que toca no Ilê Aiyê, existem opções, mas são pouco variadas. Nos largos da Lapinha e da Soledade, as pessoas se encontram para conversar, vão aos bares e casas de show, e sempre rola um partido alto, samba feito de improviso, em algum lugar. É basicamente isso.
A Liberdade já teve três cinemas, mas eles não conheceram nenhum. O mais famoso, Cine Brasil, hoje funciona como salão de baile,freqüentado pelos mais velhos. “Outro dia eu fui numa seresta e não agüentei. Era ‘a idade‘ mesmo”, conta Winnie, 17, a mais festeira do grupo.
O Shopping Liberdade, único do bairro [sem contar galerias e centros comerciais] também não faz sucesso. “Por mim, derrubavam tudo e faziam um espaço cultural”, sentencia Tauami. As lan houses, como em toda a periferia de Salvador, também são uma opção.“Mas se quem tá on-line mora do lado da sua casa, não vale a pena gastar hora”, diz Arivaldo, 19. O jeito, então, é ir se divertir em outra freguesia. Uiran, 19, costuma ir para o Garcia ou para o Engenho Velho de Brotas, mas ainda tem outro detalhe: o transporte.“Pegar ônibus aqui é complicado, tem poucas linhas”.
Quem tem carro, como Thiago Barbosa, 22, pode levar os amigos para a noite ou para o baba do fim de semana. É que o bairro também não tem quadras esportivas públicas, a não ser a do Colégio Estadual Duque de Caxias, que às vezes é aberta à comunidade. “Já saímos corridos de lá, o pessoal não agüenta perder”, conta. O medo da violência afasta alguns das ruas famosas como a Rua da Granja, onde rola um samba na laje todo domingo. Para Tauami, falta segurança. “Não tem policiais que saibam agir com a comunidade”.
A Liberdade pleiteou, sem sucesso, a definição de Quilombo Urbano, da Fundação Palmares.
Mesmo assim, os moradores se consideram em um gueto. “Ter um de cada [teatro, cinema, quadra] já ajudava bastante”, diz Katiana.
Com lazer ou sem opções, ninguém deixa a Liberdade. “Eu adoro aqui”, diz Luana. “Pelo menos, na minha quebrada ninguém me quebra”.
SEXTA
Bairro Guarani
Thiago, 22, e a namorada Jacimara Bittencourt, 17, vão ficar em casa essa noite. “A gente até saiu pra dar uma volta, mas não tem o que fazer. Se você não quer ouvir pagode e arrocha, vai pra outros bairros.”
Espaço R2
Se quem não gosta de pagode fica em casa, quem gosta sabe aonde ir. O Espaço R2 [foto], no Curuzu, foi inaugurado há um ano por Rick e Reni Veneno e já é famoso na Liberdade. No espaço espremido entre as casas rola pagode e, principalmente, partido alto. “As melhores bandas do bairro vêm para cá”, orgulha-se Reni, que já foi vocalista do Olodum. “As pessoas careciam de um espaço popular, onde pudessem pagar pouco e ter segurança”. No R2, mulher entra de graça e homem paga só R$ 1. A cerveja custa entre R$ 2 e R$ 3. Fabiana Bittencourt, 23, modelo, diz que “já faz parte da decoração”. “Aqui bomba muito, só dá a negrada linda”. Luiz Carlos Jr., 21, estudante de administração, diz que “se não tivesse o R2, a gente ficava em casa”.
Largo da Lapinha
A Lapinha é uma praça com uma igreja e um parquinho. Mas é um dos principais largos da Liberdade, onde o pessoal se encontra à noite para jogar conversa fora. Nessa sexta, a banda Conexão Jamaica tocava em um bar da praça. “Falta investimento em eventos alternativos”, reclama Wagner Gancho, 28, da CJ. “O pessoal daqui curte, mas vai pra outros bairros ouvir reggae, hip hop ou rock”.
Enquanto os mais novos paqueram furiosamente sentados nos bancos de cimento, Michael Silva, 24 e Manuela Batista, 29, da banda Palmares, também de reggae, contam que também tem problemas com a violência. “Isso acontece porque falta esporte, lazer”. E Marcio Cotonete, da banda teatral Donzelos Anônimos, se aproxima para elogiar o som dos colegas. “Querem um conselho? Vão para a orla”
SÁBADO
Praia do Canta Galo
“Está melhor do que a Barra!”, sentencia Winnie Grazielli, sobre a Praia do Cantagalo, que fica entre a Calçada e Roma. No fim de semana, a praia enche do meio-dia ao final da tarde. Aí o que lota é a fila do Plano Inclinado Liberdade/Calçada, que, por 5 centavos, leva todo mundo de volta.
Antes da construção do plano, em 1981, a descida era pela Ladeira do Inferno, que, em dias de chuva, justificava o nome. A Cantagalo também não era tão boa.“Depois que fecharam os esgotos que caíam no mar, melhorou muito”, conta Winnie, que é uma das 6,5 mil pessoas que usa o plano todo sábado. Aos domingos, são cerca de 2,5 mil.
Na falta de quadras, o baba é na areia. Tiago Vidal, Ruan e Leandro Valentim, Sidnei e Eduardo Lima e Paulo César Silva jogam na praia todo fim de semana. “Já que a gente não pode ir para a Barra, vem para a Barragalo”, resume Sidnei, 14. Sábado à noite, o programa é “dar um rolé” no Largo do Tanque. “Não tem muito o que fazer, não”, dizem, quase em coro.
Ensaio do Ilê Ayiê
A festa tradicional no Curuzu dispensa apresentações, mas, na Liberdade, nem todo mundo vai ao ensaio do Ilê. “Agora ficou restrito, porque a gente tem que pagar R$ 15 pra entrar”, explica Uiran Charles, 19. Alguns dos entrevistados nesta matéria nunca tinham visto o Ilê, e a maioria lamentava o fato de ter que pagar para ver o que foi grátis. Mas quem já viu não deixa de elogiar. “Lá a gente vê que o negro tem a sua beleza.”
DOMINGO
Escada Musical
Aos poucos, os curiosos se aproximam da escadaria da Rua Coronel Tupy Caldas, no Curuzu, transformada em palco. É o fim da tarde de domingo e vai começar mais uma edição da Escada Musical, organizada por moradores do bairro. Até as 22h, horário combinado com os vizinhos, tocam bandas de reggae, hip hop, jazz e rap, há leitura de poesias e informes para a comunidade. De vez em quando, teatro. Giuliana Hansen, 24, conta que o projeto já aconteceu por dois anos,parou por falta de apoio e agora retorna: “Já tivemos mais público, mas desta vez queremos conscientizar as pessoas, além de dar diversão.”